Quando um carro transforma uma vida por completo

 

Quando eu era criança, volta e meia ia para a praia com a família, meu pai dirigindo. Minha mãe me disse uma vez que, naquele tempo, enquanto todos iam curtindo a viagem até o litoral, eu ficava olhando as placas, e ainda dizia os nomes das mesmas: "curva à esquerda", "curva à direita", "pista sinuosa à esquerda", "pista sinuosa à direita" etc.. Outras vezes eu ficava olhando o hodômetro do carro girar, e ainda achava legal o movimento do ponteiro do velocímetro. Isso minha mãe dizendo, né... Não que eu esteja lembrado, naturalmente, pois passei tão rápido pela infância que mal tive tempo para guardar lembranças.
Uns anos mais tarde, já na pré-adolescência, meu pai resolveu me ensinar a dirigir (naquele tempo, na praia, como o balneário não era lá muito povoado, era possível - hoje não se faz mais isso por nada). Essas primeiras lições de direção que meu pai me deu foram num Corcel II dourado - o carro que meu pai podia ter na época, num tempo em que não haviam todas essas facilidades de hoje em dia. Lembro de ter atolado o dito cujo num lamaçal... Mas, total, eu nunca havia dirigido antes, então, normal...
Avançando no tempo, em 2002, já aos dezoito anos completos, quase dezenove, contei ao meu pai que eu queria fazer carteira de motorista. Ele ficou meio "assim, assim", meio que duvidando disso, mas, enfim, apoiou a ideia. Lá fui eu pagar todas as taxas, fazer os exames, frequentar as aulas teóricas e práticas, fazer as provas - aliás, no dia da prova prática, meu pai e uma das minhas irmãs estavam lá, torcendo. Passei de cara, obtendo minha primeira habilitação em agosto daquele ano - a família acabara de ganhar mais um motorista.
Atualmente, com todos esses aplicativos de transporte, acho que as coisas já não são mais assim, mas lembro bem que, naquele tempo, o sonho de quase todo guri que chegava perto dos dezoito anos era ter o próprio carro. Afinal, dezoito anos era maioridade, né? Comigo não foi diferente. Aí eu disse aos meus pais que queria juntar dinheiro para comprar um carro - vê se pode, recém adulto e já querendo carro... Fui ao banco com minha mãe, abri uma poupança e comecei a depositar lá qualquer dinheiro que eu ganhasse - tenho essa conta até hoje. Juntei, juntei, juntei... Aí deu para eu comprar um velho Chevette marrom. "Olha, é meu!" Legal, né?
Porém...
... o carro deu problema, e dos sérios, daqueles cuja única solução era levar ao ferro velho.
Vocês já devem imaginar o quão "borocochô" fiquei, com todo aquele azar... Resultado: nunca mais falei em comprar carro por longos anos. Adotei transporte público, principalmente trem. Andei de bicicleta. Fui a pé. Depois, com o advento dos aplicativos, o Uber virou meu meio de transporte oficial.
Agora, vamos ao presente ano, 2020.
Meu pai, com idade avançada, vinha tendo sérios problemas de saúde e estava quase sempre no hospital. Sabendo que seu tempo na Terra estava se findando, ele me chamou para conversar, explicando toda a situação e me fazendo uma proposta: passar o carro para mim. No início, fiquei muito relutante, pois todo proprietário de veículo automotor tem um sem-número de gastos com manutenção, combustível, IPVA, seguro, dentre outras tantas coisas. Eu não sabia bem o que responder na hora; quem me incentivou ao "sim" foi minha mãe. No final das contas, após muito pensar a respeito, aceitei a proposta - e ainda bem que o fiz, pois, se recusasse, o carro entraria em inventário e isso significaria uma terrível dor de cabeça. Não julgo necessário entrar em detalhes, mas, de qualquer forma, após toda a papelada burocrática (transferência, vistoria, novo documento etc.), tudo se concretizou.
Hoje, próximo dos meus trinta e sete anos, e dezoito anos após eu ter tirado minha primeira carteira de motorista, finalmente sou proprietário de um carro - por herança. É um belo VW Fox prata, comprado novo e à vista pelo meu pai, herdado por mim, e do qual cuidarei com todo o amor e carinho - meu pai sempre foi extremamente zeloso com seus carros, e comigo será a mesmíssima coisa, se não ainda mais. Sei que é muito difícil arcar com tantas despesas referentes a um veículo, e que, por isso mesmo, muitos jovens recém chegados à maioridade já nem pensem mais em dirigir, sabendo que tem esses aplicativos à mão, mas recebi essa grande missão de dar continuidade ao legado do meu pai como motorista, e a cumprirei com galhardia, sejam quais forem os obstáculos à frente. Meu pai não me passou apenas o carro; me passou também uma imensa responsabilidade, a qual me orgulha muito, e a plena confiança em mim.
Posso dizer que o carro mudou minha vida em níveis inimiagináveis. Amadureci muito desde o dia em que recebi o novo CRLV com meu nome impresso ali.
O carro me fez crescer como homem.

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