Capacidade escondida



Sabe quando pensamos que nunca, jamais seremos capazes de fazer determinadas coisas, mas de repente percebemos que o “nunca” e o “jamais” não tinham nada de reais? Em outras palavras, quando descobrimos em nós certas possibilidades até então escondidas, talvez por medo de explorá-las, e que depois se tornam parte de nossas vidas? Então, foi o que aconteceu comigo recentemente.
Até pouco tempo atrás eu passava reto pela cozinha, a não ser quando queria fazer um lanche - leia-se: um pacote de Club Social ou Pit Stop com um copo de leite gelado ou uma xícara de café com leite, conforme o clima. Vez que outra eu arriscava uma batida e/ou uma torrada (como chamamos aqui no RS aquele lanche prensado de duas fatias de pão com recheios variados - em boa parte do Brasil ele é chamado de "misto quente"), principalmente no inverno, mas fora isso, nada de mais "avançado", digamos assim. Para mim, a cozinha sempre foi uma caixa de Pandora, lacrada e cujo conteúdo ninguém conhece. Imagino que, devido aos meus pais serem cozinheiros de longa data, achei que não seria necessário passar por essa experiência, até mesmo, confesso, por nunca de fato demonstrar interesse. Afinal, qual o motivo de passar trabalho quando sempre se tem comida prontinha na mesa?
Mas essa fase acabou.
No dia 30 de março deste ano, como parte de um exercício proposto pela minha terapeuta (sim, faço consulta semanal com uma psicopedagoga, e isso é muito bom, se querem saber - não tenham medo de afirmar que se consultam com terapeutas), recebi a incumbência de fazer uma panela de arroz. A tarefa me foi dada como "tema de casa" e deveria ser comprovada de alguma forma - optei por registrar em vídeo e mostrar na consulta seguinte. No começo fiquei pensando: "como assim, sendo que nunca cozinhei antes?". Mas, em todo caso, topei o desafio, e seis dias depois lá estava eu na cozinha, fazendo a tal panela de arroz. Como era apenas minha primeira experiência na cozinha (bom, imaginem o que é ter uma primeira experiência na cozinha já tendo mais de trinta anos, quando o "normal" é começar bem mais cedo...), minha mãe observou a cena, dando uma ou outra orientação conforme a necessidade. Eu estava nervoso (sabem como é, marinheiro de primeira viagem...), pois me deu medo de que o arroz ficasse ruim, salgado, duro, ou sei lá. Mas deu tudo certo - pelo menos o resultado foi uma panela de arroz bem branquinho e soltinho, bem como minha mãe costuma fazer há muitos anos.
Então, pensei comigo: "OK, consegui fazer o arroz, mas será que ficou bom?".
Era chegada a hora do almoço. Enquanto fiz o arroz, minha mãe fez carne (ou frango, não lembro agora) e salada. Meu pai, como de costume, já estava a postos à mesa no lugar dele. Fui ao meu lugar pouco tempo depois, e minha mãe por último. Os pratos foram servidos e, na mesma hora, dei ao meu pai a "honra" de provar a primeira garfada daquele arroz. Como eu não estaria preocupado, sendo meu début na cozinha? Mas a preocupação inicial logo deu lugar ao alívio: meu pai não só gostou muito do arroz, como também repetiu a dose (!!!)... Estava dado o recado: havia um cozinheiro escondido em mim, e eu nem imaginava...
No outro dia mostrei à minha terapeuta o registro em vídeo de mim fazendo o arroz. Isso fez ela me dar outra tarefa culinária: acrescentar coisas ao arroz - e, claro, comprovar isso (também optei por registrar em vídeo).
No dia 12 de abril, pensando no que eu poderia fazer para "acrescentar coisas ao arroz", a primeira coisa que me veio à mente foi carreteiro de linguiça, sendo que já tinha todo o material em casa e não seria necessário comprar nada. Eu já não mostrava mais tanto nervosismo - aliás, eu até já estava gostando dessa história... Quando eram dez horas, lá fui eu picar tomate, cebola e uma perna de linguiça, lavar o arroz, abrir uma lata de milho, jogar óleo de oliva na panela etc.. Ficou tudo pronto pouco antes da hora do almoço. E comemos tanto que quase não sobrou para a janta (!!!)... Nunca pensei em um dia ter a capacidade de fazer o almoço da família, mas agora isso já foi provado...
Na consulta seguinte eu estava todo faceiro, louco para mostrar o novo vídeo para a minha terapeuta, e assim foi feito. Ela adorou ver a evolução e me aconselhou a de vez em quando tomar parte na cozinha para manter a prática. Não como "tema de casa", mas no dia-a-dia, para aperfeiçoar. Eu, pelo meu lado, pensei comigo: "bom, acho melhor aprender a fazer o máximo possível com arroz primeiro, e só mais tarde partir para outras coisas".
Olha... Nem precisou do "mais tarde"...
No dia 19 de abril (ou seja, anteontem), tive a intenção de fazer arroz de forma com frango. Listei o que era necessário: tinha quase tudo em casa, menos o frango. Meu pai estava presente, percebeu isso e se ofereceu para ir ao mercado buscar umas coxas e sobrecoxas de frango. Ele foi lá e voltou com os pacotes. Quando vi aquilo, olhei para minha mãe e disse: "vou fazer outra coisa, não arroz de forma". Pensei, pensei, pensei... Até que me deu uma luz: frango assado com batata na forma. O que fiz? Untei a forma, coloquei farinha de trigo, depois descasquei umas seis ou sete batatas inglesas, fatiei todas e espalhei pela forma. Então, peguei todas as coxas e sobrecoxas, acrescentei pimenta, tempero misto, orégano, sal, óleo de oliva etc., misturei bem na bacia, deixei descansar por um tempo, aí coloquei todos os pedaços temperados em cima das batatas fatiadas e pus no forno. Fiquei olhando tudo aquilo dourar... Aí, na hora do almoço, levei à mesa a receita pronta - e nem era com arroz...
Sendo minha primeira experiência "diferente" (porque até então fui fazendo pratos com arroz), bateu de novo aquela preocupação de iniciante. "Será que ficou bom?"... Mas vendo não sobrar nada na forma, percebi que, realmente, a receita foi um sucesso. Eu não tinha palavras para descrever o que senti quando vi que tinha capacidade para receitas relativamente mais sofisticadas...
O dia seguinte era de nova consulta com a minha terapeuta, e dessa vez eu não precisava provar nada, mas ainda assim, enquanto eu preparava o prato principal, pedi para minha mãe tirar umas fotos, tanto de mim fazendo a receita, quanto do resultado final. Mostrei tudo à terapeuta, e ela se impressionou... Afinal, para quem sempre foi um zero à esquerda na cozinha, aquele frango com batatas foi uma evolução e tanto...
Hoje, por conta própria, sendo um feriado de clima chuvoso e não tendo nada para fazer, resolvi praticar mais um pouco - dessa vez não um prato principal, mas algo que pudesse servir para comer no lanche ou no café da manhã. Vasculhando na Internet, descobri uma receita de pãezinhos doces, aparentemente super simples, mas que na prática levou um certo tempo até ficar pronta. Quando eram umas quatro e pouco da tarde, fui à cozinha e peguei tudo o que tinha na lista dos ingredientes - aí faltou um único item: fermento biológico. Tive que correr atrás de alguma padaria aberta que tivesse um envelope de 10g de fermento biológico - sendo que um dos ingredientes era leite morno, e se eu me atrasasse muito, ele ficaria frio, e a receita seria invalidada. Mas consegui achar um, e ainda cheguei a tempo de o leite ainda estar morno como antes. Daí em diante foi jogar tudo no liquidificador, depois jogar a mistura numa bacia com farinha de trigo, sovar a massa, fazer umas bolinhas, levar ao forno e, depois de tudo cozido, separar os pãezinhos recém-feitos e colocar numa bandeja. Minha mãe postou umas fotos dos pãezinhos sendo feitos no grupo da família no WhatsApp e, assim que uma das minhas irmãs viu, já quis provar. Logo, depois que os pãezinhos ficaram prontos, resolvi não mexer neles, esperando minha irmã chegar. Ela chegou, provou um e imediatamente já levou alguns para casa... "Opa! Ficou bom!", imaginei. Então, eu mesmo fui provar um deles... e tive que me segurar para não comer uns oito (sendo que a receita rendeu vinte)...
Assim como no caso do frango com batata, também pedi para minha mãe tirar umas fotos. Quando for a próxima consulta com minha terapeuta, vou mostrar para ela todas, desde as que mostram a mistura da massa até a da receita pronta. Aliás, acho que essa semana será bem cheia... Na cozinha, pelo visto...
Então é isso: eu me achava uma negação quando se tratava de comida, mas percebi que, sim, sou capaz disso. E vou além: quero me aperfeiçoar cada vez mais, até chegar ao ponto de ser o "cozinheiro titular" da casa. Se até o momento eu só exercitava isso nas terças, agora será várias vezes por semana, e sempre que possível, registrando isso.
Descobri em mim uma capacidade escondida, bem escondida, mas que agora está mais à tona do que nunca...

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